muros e fundos_ de milho verde

#01 | igreja de três barras.

Sábado 19 de abril. 2008.

Cheguei em Milho Verde e fui conversar com o pessoal do Instituto Milho Verde que é de onde vem o projetor, uma câmera, vários metros de extensão, mãos, braços e abraços. Fiquei já de cara sabendo que eles iriam fazer uma projeção de cinema, um filme de Mazzaroppi, na pequena cidade vizinha de Três Barras, dentro da igreja.

Resolvi acompanhá-los para fazer uma primeira intervenção, que eu estava tomando mais como ensaio, como teste das estruturas disponíveis. Assim, enquanto eles montavam dentro da igreja o telão e os equipamentos, fui para o gramado e projetei na parede externa. Fui pensando que seria uma boa forma de atrair a atenção das pessoas e ir formando um público pro filme. E assim foi.

As imagens que projetei eram da própria região, que eu tinha feito no ano passado: primeiro umas crianças brincando e depois uma cachoeira. Aos poucos as pessoas foram se aproximando e formando um círculo largo em frente à projeção. Os adultos ficaram mais afastados e as crianças devagarinho foram entrando na frente, deixando suas silhuetas se misturarem à imagem.

Deu para perceber que a atenção estava dividida entre as crianças da imagem e a gente, eu e meus amigos, todos nós visivelmente de fora do contexto daquela comunidade, que filmávamos e disparávamos flashes de fotos.

Em um determinado momento, resolvemos trocar a câmera que fazia vt e a camera de registro e por isso interrompemos subitamente a projeção. Esse foi um momento muito interessante. Ao se apagar a imagem, a igreja acendeu. E as pessoas, que se viram olhando pra parede, ficaram desconcertadas. As crianças, já começaram a brincar entre si e em muito pouco tempo o círculo estava quase desfeito. Logo voltamos com a imagem e as pessoas novamente se voltaram pra ela. Repetimos essa ação mais uma vez.

As pessoas da pequena comunidade de Três Barras se pareciam a mariposas atraídas pela luz. Atraídos pelo mundo de dentro da imagem, que era separado do mundo de fora pelo ligar-desligar do projetor. Os dois espaços não se misturaram. Havia o dentro da imagem e o fora, onde as pessoas se encontravam. O adro da igreja de Três Barras.

A imagem, ao acender, coloca o público no conforto da penumbra. Ao apagar, traz de volta o foco para a pessoas.

Houve apenas um momento em que senti a imagem se misturar efetivamente à paisagem: quando começou a cena da cachoeira, passei a movimentar o projetor, a lançar a imagem para o chão e também sobre as pessoas. Fiquei um pouco temerosa das pessoas não gostarem da projeção no corpo delas, mas parece que elas se divertiram.

Tudo durou 20 minutos, no máximo.

#02 – escola estadual professor leopoldo pereira.

Terça feira, 22 de abril.
(primeira projeção pra valer)

Além dos finais de semana especiais e feriados, a vida noturna em Milho Verde é praticamente inexistente. Eu, depois de minhas várias estadias por lá, já entendia isso, mas foi somente nesse momento em que a noite me interessava particularmente que tive noção do quão deserta ficam as ruas assim que o sol se põe.

Passei um tempo pensando sobre isso, tentando identificar quais seriam os lugares que mesmo depois das 18h teriam um movimento de pessoas, pelo menos passantes, para que a intervenção intervisse. Quando um amigo me sugeriu a hora de saída dos alunos do turno noturno da escola de Milho Verde, fiquei entusiasmada. Cheguei a imaginar que as projeções poderiam ser sempre lá, atuando especificamente com o grupo adolescente milhoverdense, que tem sido motivo de muita discussão, em relação à falta de interesses, de envolvimento com questões comunitárias, etecétera.

Combinei com a diretora da escola que ela abriria a porta 5 minutos antes do sinal (às 21h40min), para que eu ligasse a extensão na tomada. Isso de ter uma hora certa, tempo contado e combinações secretas criou uma expectativa (em mim) e ressaltou a idéia de intervenção… tudo talvez um pouco romantizado… mas ainda assim.

Preparei imagens de um banco da Praça da Liberdade, com pessoas chegando e saíndo sucessivamente; placas de trânsito, com símbolos de pedestres e ciclovias; um sinal luminoso de pedestres, no seu ritmo convencional de alternância aberto-fechado e, para terminar, um ponto de ônibus muito movimentado do centro de Belo Horizonte.

Imaginei que as pessoas, saindo da escola, passariam necessariamente pela rua onde estávamos e, se deparando com as imagens, poderiam observá-las, continuar conversando com os amigos, algumas talvez já fossem andando e, por isso, eu planejava me movimentar, passeando com a projeção pelas fachadas e muros das casas ao redor, um telefone público e a traseira do ônibus escolar que esperava estacionado. Para cada imagem eu já tinha selecionado um lugar específico. Mas não foi assim.

O sinal bateu.
O motor do ônibus ligou.
O projetor acendeu.

Uma nuvem de adolescentes veio descendo a rua, e, desesperados para irem embora, foram passando pelas imagens, câmeras, projetor e nós mesmos, sem qualquer observação. Fomos totalmente ignorados. Como se aquilo fosse para eles a coisa mais corriqueira do mundo.

Eu, com projetor na mão, de inicio mantive a projeção da primeira imagem na fachada de uma casa, como tinha planejado. Mas logo me veio a necessidade de movimentar o projetor, pra tentar interagir com o movimento dos meninos, pra trazer alguma interação, se não era deles comigo, que partisse de mim para eles. Comecei a projetar no chão por onde passavam, no morro e até neles, nas camisas. A imagem do banco de praça mudou para a do sinal de pedestre e os bonequinhos verde e vermelho iam se misturando às pessoas, seguindo-as. A imagem não ficou nítida o suficiente no ônibus, mas uma kombi estacionou bem próximo ao local em que estávamos e deu um efeito interessante, talvez o melhor conseguido. As pessoas iam entrando na kombi e passando através da imagem.

Mas tudo durou muito pouco tempo. Cinco minutos após o sinal, a rua já estava deserta e só restamos nós mesmos e o ponto de ônibus que, projetado num muro, encaixou perfeitamente: tamanho, luz, composição. Parecia mesmo estar ali.

Logo após o acontecido, eu não posso negar que me senti frustrada.
Tive medo de nada dar certo, dessas intervenções não fazerem sentido nenhum em um lugar como Milho Verde.

Mas isso foi bom na verdade para perceber, já de início, que minha concepção de inserção da imagem no ambiente teria que ser repensada. A inserção mais importante não é em relação à composição espacial, à simulação, à sensação de presença. E sim, a adequação ou não da imagem com o clima do momento. A dispersão ou a concentração das pessoas no local influem no ritmo da imagem, na sua movimentação…. Então, nesse ponto, a intervenção na escola foi sim muito positiva. É uma relação que não deve se dar só com o espaço, mas com o espaço conjugado com o tempo.

Anotações:
PONTO IMPORTANTE.
A imagem fantasma, flutuante, explicita sua dimensão gráfica, um objeto, construído, conformado, manipulado…. Mas a tentativa não é exatamente causar o contrario? A simulação, a inserção, a dissolução no espaço? As duas coisas estão presentes, apesar de parecerem antagônicas.

#03 | Seu Milton, seu muro.

Quarta feira, 23 de abril.
Depois da experiência da escola, resolvi fazer a intervenção seguinte na porta de uma casa, direcionada a uma família e seus vizinhos mais próximos. Pensando nos contextos de “portas de casas” de interior, uma questão de território íntimo, um público mais privado.

Em frente à casa do Seu Milton, foi construído recentemente um muro. Um muro na paisagem de Milho Verde chama muita atenção e este, mais ainda: é alto e está no reboco puro. Daquele tipo que, se estivesse em Belo Horizonte, com certeza já estaria pichado.

Para esse caso especialmente, resolvi que seria melhor conversar antes com Seu Milton, explicar que desejava fazer uma projeção em sua porta, aproveitando para pedir uma tomada para ligar o projetor. Mas Seu Milton não estava em casa, nem sua esposa parecia estar. Eram 17h30 e estava tudo fechado, apagado, quieto.

Puxamos a energia de um outro vizinho e acomodamo-nos na soleira da casa, sentados nos degraus.

As imagens projetadas foram primeiro um muro todo grafitado e depois a montagem de duas “barraquinhas” de feira, filmadas no bairro de Santa Tereza, em BH. As duas tiveram um efeito muito interessante nesse muro, na rua em que estávamos. O local é especialmente escuro, com poucos postes, e com isso obtivemos uma imagem muito nítida. Como a rua é estreita, o único lugar possível de se projetar sem distorção da imagem era mesmo o muro, mas em alguns momentos, experimentei a projeção nos telhados, nas àrvores, no chão, explorando a textura, o efeito de revestimento, encapando as casas com as imagens.

Nessa intervenção observei que a maioria das pessoas que passou pelo local era de um grupo de moradores não-nativos de Milho Verde - essa distinção é muito marcante na comunidade. Foram pessoas que estavam sabendo das intervenções e por isso foram até o local. Estava também presente o Vagner, um rapazinho milhoverdense que foi personagem de um video que realizei durante o mês de julho de 2006. Vagner é mudo e tem uma percepção e uma expressão muito singulares, e desde o caso do vídeo que fizemos juntos, ele ficou muito interessado em audiovisual. Sempre que me vê pela cidade, coloca uma mão em torno do olho, imitando uma câmera. Nesse dia então eu havia chamado o Vagner para fotografar a intervenção. E ele foi uma presença muito boa, parecia ser quem mais estava ligado na proposta daquelas imagens.

Quando estávamos já quase indo embora, vemos surgir na ponta da rua o Seu Milton.
Ele veio desde a esquina já meio encafifado, falando alto, para ninguém e todo mundo. Notei que as pessoas que estavam comigo e que o conheciam bem ficaram alertas, foram se levantando. Eu estava com o projetor no colo e continuei sentada. Ele veio se aproximando, estava com um pau na mão, um toco de madeira, um galho de árvore, não sei o que era. Sei que quando ele foi passar na minha frente, eu já preparada para explicar o que fazíamos ali, a luz da projeção foi nos seus olhos, incomodando-o. Ele se assustou e veio com o pau na minha direção, com violência. Por sorte tive o reflexo de mover o projetor e assim desviar a luz. Na mesma hora, ele reteve o golpe. Estávamos muito próximos um do outro e foi mesmo por poucos centímetros que não fui atingida. Ficamos todos assustados, fui tentando conversar com ele, explicar o que estava acontecendo (foi nessa hora que surgiu a frase hilária do Bruno, amigo do Instituto Milho Verde, “Calma Seu Muro, só estamos projetando uns filmes aqui no seu Milton”! ). Ele não deu muita bola, entrou pra casa resmungando qualquer coisa e fechou a porta. Encerramos por ali. Fiquei muito impressionada com a lembrança da cena do projetor-arma. A agressão pela imagem na forma mais literal possível.

#04 | Da alegria. Feliz coincidência.

Quinta feira, 24 de abril.
A projeção no Largo da Alegria foi um momento de satisfação total.
Desde o princípio, já houve indícios de que ali seria um local de maior movimento norturno. Eu já tinha feito projeções nesse local em outra ocasião e o espaço me agrada pela distância entre as casas, pela variedade de “superfícies” para projetar. Sem falar em uma casa especialmente, que é toda branca e bem larga, uma telona mesmo.

Quando chegamos, estava tudo quieto. Fomos arrumando as coisas, esticando a extensão e ligando o projetor. Começamos a projeção e fiquei tranquila, sentei ao lado do projetor e fui experimentando umas imagens, mudava a posição da projeção, aproximava ou afastava de algumas casas… tentei projetar nos telhados, mas ficou escuro.
Aí começaram a aparecer pessoas. Primeiro um rapaz, com um bebezinho no colo. Ele se assentou na grama e ficou assistindo, muito compenetrado. Mas não deu conversa. Tinha também um pessoal barulhento numa das casas ao lado; eles assistiam novela com o som altíssimo. Depois passou um senhor de bicicleta que parou para olhar e ficou uns 5 minutos, interessado.

Foi aí que apareceu um grupo de crianças, um bando! Tinha uns 8 meninos, de várias idades, meninas também. Eles chegaram muito de repente e muito agitados, já fazendo perguntas “vai ter projeção?!”, “o que você vai passar?”. E no começo fiquei um pouco assustada, atrapalhada. Mas os meninos ficaram instigados e foram se acalmando, olhando, começaram a perguntar o que era aquilo, onde era aquilo. Quando viu carros, ruas asfaltadas, um menino perguntou se era o Serro. E outro falou que não, não era não. Aí resolvi conversar com eles, contei que era Belo Horionte, que eu morava lá, mas que podia também ser ali mesmo, em Milho Verde, olha só se não parece que esse pessoal tá aqui? Pronto! Bastou isso e eles foram correndo para perto da imagem e começaram a interagir com os elementos da cena, com as pessoas filmadas, brincaram de correr atrás do ônibus, sentaram no banco, pediram cerveja pro homem da barraquinha de feira.

Foi muito bom ver isso tudo acontecendo. Praticamente todas as “provocações” que eu tinha colocado propositalmente foram percebidas por eles. Mas foi além! Aquela história toda de construção polifônica das cenas é possível, é verdade, realmente os elementos interagem e dá mesmo a impressão de que as superfícies se misturam.
Teve uma hora em que isso ficou muito nítido: um dos meninos se aproximou da barraquinha de skol e disse: “ô de casa, vim comprar cerveja”. Nessa hora, ele chegou muito perto da imagem, e também, claro, da casa sobre a qual estavámos projetando. Foi aí que um cachorro que estava preso do lado de dentro, começou a latir e o menino levou um susto, saiu correndo! Ficou parecendo que o cachorro estava “tomando conta” da barraquinha, marcou a proibição, do tipo: “cerveja não é coisa de menino”!

Mas fora todas essas brincadeiras, teve um momento especialmente bonito. Por coincidência, eu tinha levado nesse dia uma fita “reserva” com outras imagens, antigas, de Milho Verde mesmo. Como a projeção estava durando muito, as imagens que eu tinha preparado acabaram e eu coloquei essa outra fita. Eram crianças brincando, soltando pipa e depois jogando bola. Achei que fosse ser legal, mas não podia imaginar que eram eles próprios! Foi uma surpresa, para mim, e para eles. Eles adoraram, ficaram narrando tudo que ia acontecer, rindo um do outro. E eu rindo também, boba alegre.




#05 | Quadrilha fora de época - Rua do Campo.

Sexta feira, 25 de abril.
No final da tarde eu estava descendo a Rua do Campo e uma menina me chamou, para me avisar que à noite ia ter ensaio de quadrilha ali na porta da casa dela. “Quadrilha? Em abrill?”, foi o que eu pensei e disse. Ela me respondeu que como não acontece nada em Milho Verde, eles tinham inventado uma quadrilha-fora-de-época, para animar! Eu, que só atualmente só penso “naquilo”, na mesmo hora resolvi que a intervenção do dia seria ali.

Cheguei umas 21h e a festa já estava bem movimentada. Mas a “puxadora” da quadrilha ainda não tinha chegado e pensei então que seria uma boa fazer como em Três Barras e usar as projeções para atrair as pessoas até o local.

Liguei o projetor e a imagem não ficou muito nítida, pois o lugar estava iluminado demais.
Mas nem fez diferença. Nesse dia, a imagem funcionou como brincadeira junina, fogueira, pescaria, tiro ao alvo.
O som estava muito alto, tocando forró e música caipira e não sei se fui influenciada por isso, mas quase não deixei o projetor parado. Fiquei rodando as imagens pelo ambiente, no chão, nas paredes. E as crianças ficavam correndo atrás da imagem, tentando pegá-la. Muitas vezes a projeção se fragmentava tanto entre as mãos, pernas e braços dos meninos que a imagem nem chegava a se formar, deixando borrões por onde passava.

#06 | Largo do Rosário

Sábado, 26 de abril.
Último dia de videointervenção. Não podia deixar de ter uma ida ao Rosário, lugar mais conhecido de Milho Verde. Fui até lá também porque nenhuma das projeções tinha sido até então naquela região da cidade.

Em frente à igreja tem um amplo gramado que termina num muro. Um muro baixo, no qual tem também uma cerca de arame farpado, usada de varal. Nesse dia experimentei uma coisa diferente. Coloquei uns lençóis brancos no varal para serem os aparatos. Isso não funcionou muito bem, ficou muito parecido com uma tela convencional. Um único efeito que foi interessante foi quando bateu um vento e o pano ficou se movendo, interferindo na imagem projetada.

Não havia muitas pessoas no lugar, a não ser num bar, de onde peguei a energia elétrica. Mas as pessoas não deram muita atenção, continuaram sentadas na porta desse bar, conversando. O interessante é que por acaso as imagens que eu tinha levado eram cenas em que não havia muita ação. Um cachorro deitado na margem de uma estrada e depois uma janela de um prédio, com a cortina mexendo com o vento (o que ficou ótimo no lençol).




cão pixel. from elisa marques on Vimeo.